As implicações jurídicas na titularização de bens em nome de terceiros

A confiança é o vínculo fundamental da sociedade humana.”

 Cícero

“Coloquei a casa no nome de minha esposa”, “o carro está no nome do meu filho”, “transferi a conta para o nome da minha mãe”. Quem nunca ouviu frases como essas em conversas cotidianas? Por trás dessas expressões aparentemente simples e corriqueiras, esconde-se um universo jurídico complexo e repleto de nuances que podem transformar uma decisão aparentemente prática em uma fonte de problemas futuros.

Esta realidade apresenta duas faces distintas: de um lado, pessoas que, por desconhecimento ou simplicidade, realizam essas operações sem compreender suas implicações jurídicas; de outro, aqueles que, conscientemente, utilizam-se desses mecanismos com propósitos deliberadamente fraudulentos. Em ambos os casos, as consequências podem ser severas, ainda que as intenções sejam radicalmente diferentes.

O Código Civil brasileiro consagra, em seu artigo 422, um princípio fundamental que, embora positivado no título referente aos contratos, irradia seus efeitos por todo o ordenamento jurídico: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Este dispositivo legal, mais do que uma regra contratual, representa a positivação de um princípio geral do direito que deve orientar toda e qualquer relação jurídica. A boa-fé objetiva, como modelo comportamental, aplica-se a toda manifestação de vontade juridicamente relevante, estabelecendo um padrão de conduta que exige comportamentos objetivamente verificáveis de honestidade, transparência e lealdade.

No contexto das transferências patrimoniais, a aplicação deste princípio geral revela-se ainda mais crucial. Quando alguém decide registrar um bem em nome de terceiro, independentemente da natureza jurídica da operação escolhida – seja uma doação, compra e venda, ou qualquer outra modalidade – tal manifestação de vontade deve necessariamente passar pelo crivo deste preceito fundamental. Não basta a mera observância dos requisitos formais; é necessário que a operação se revista de legitimidade tanto em sua forma quanto em seu propósito.

O ordenamento jurídico brasileiro, reconhecendo a amplitude e a importância da boa-fé objetiva, estabeleceu diversos mecanismos para garantir sua observância. O Código Civil, em seus artigos 158 a 165, disciplina a fraude contra credores, enquanto o artigo 167 trata da simulação. Estas disposições não visam impedir as transferências patrimoniais legítimas, mas sim coibir aquelas que, sob a aparência de legalidade, buscam fraudar direitos de terceiros ou dissimular situações juridicamente reprováveis.

A amplitude deste princípio é tal que influencia não apenas as relações entre particulares, mas todo o sistema jurídico. O Provimento CNJ 149/2023, ao estabelecer mecanismos de controle no âmbito notarial e registral, materializa esta preocupação ao determinar, por exemplo, a comunicação obrigatória de operações que envolvam valores expressivos, a análise da compatibilidade econômica das partes e o monitoramento de operações aparentemente fragmentadas. Tais medidas concretizam, no plano prático, a necessidade de conduta proba e leal em qualquer negócio jurídico.

A inobservância destes preceitos acarreta consequências que transcendem a esfera negocial. No plano jurídico, qualquer operação realizada em desacordo com a boa-fé objetiva pode ser invalidada, seja por nulidade em caso de simulação, seja por anulabilidade em caso de fraude. Importante destacar que, conforme a Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça – STJ, o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente, demonstrando a relevância da boa-fé objetiva inclusive na caracterização de fraudes. Em situações específicas, pode-se chegar à desconsideração da personalidade jurídica, conforme previsto no artigo 50 do Código Civil, quando evidenciado o uso abusivo de estruturas societárias.

No âmbito das transferências patrimoniais, existem caminhos legítimos e seguros para a proteção do patrimônio familiar. O planejamento sucessório estruturado permite a organização patrimonial através de doações com reserva de usufruto ou a constituição de holdings familiares – esta última representando um exemplo clássico de planejamento tributário lícito – sempre com a devida transparência e documentação. Estas alternativas, quando implementadas com assessoria jurídica especializada, oferecem a desejada proteção sem os riscos inerentes às transferências informais.

A implementação segura dessas operações requer a observância de medidas essenciais: avaliação prévia da capacidade econômica das partes, documentação clara da origem dos recursos e, sobretudo, transparência nas relações. Estas precauções, aparentemente simples, distinguem uma operação segura de uma potencialmente problemática.

Aqueles que optam por caminhos irregulares enfrentam um sistema de controle cada vez mais articulado. O Provimento CNJ 149/2023 instituiu rigorosos mecanismos de monitoramento cartorial, determinando a comunicação automática de operações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). Este sistema se integra com outros órgãos de controle, como a Receita Federal, formando uma rede robusta e integrada de fiscalização.

As consequências de práticas irregulares manifestam-se em múltiplas esferas. No âmbito civil, podem resultar na nulidade absoluta por simulação ou anulabilidade por fraude. Administrativamente, as penalidades incluem multas substanciais e restrições cadastrais que comprometem significativamente a vida financeira dos envolvidos.

Na esfera penal, práticas irregulares podem configurar crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo (Lei 8.137/90), “lavagem” de dinheiro ou ocultação de bens (Lei 9.613/98) ou falsidade ideológica, com penas que incluem reclusão e multas expressivas. O sistema financeiro responde com bloqueios de contas e restrições operacionais que podem perdurar por anos.

A formalidade de alguns negócios jurídicos inclui a participação de um advogado. Nesse sentido, o papel desse profissional transcende o mero conhecimento técnico dos instrumentos jurídicos disponíveis. Cabe a ele compreender e transmitir a seus clientes que a boa-fé objetiva não é apenas um requisito formal, mas um princípio fundamental que deve nortear qualquer operação patrimonial. Esta orientação deve abranger tanto os aspectos práticos quanto os fundamentos éticos que sustentam nossa ordem jurídica.

Retomando-se aquelas situações cotidianas mencionadas no início deste artigo: quando, por exemplo, alguém, ao se referir a um bem de seu patrimônio, afirma “coloquei a casa no nome da minha esposa”, faz-se necessário que tal ação tenha não apenas um respaldo jurídico pautado no cumprimento de requisitos formais objetivos dos negócios jurídicos, mas que seja permeada pelos valores de probidade, lealdade, transparência e equidade que caracterizam o princípio da boa-fé objetiva nas relações sociais. Somente assim se pode garantir a verdadeira segurança jurídica dessas operações, protegendo tanto os interesses das partes envolvidas quanto os direitos de terceiros potencialmente afetados. Afinal, como diz Cicero, a confiança é o alicerce que sustenta as relações sociais e permite que a sociedade funcione de maneira harmoniosa e eficiente.

Referências

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.

BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 11 de março de 2023.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 375: O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.

CÍCERO, Marco Tulio. Dos Deveres (De Officiis). Lisboa: Edições 70, 2017.


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