A morte tudo resolve! Será?

Os dramas humanos têm o poder de revelar a complexidade inerente à condição humana para viver em sociedade. Eventualmente, para facilitar sua compreensão, esses dramas são expressos na forma de histórias experenciadas ou imaginadas, promovendo vivências contextualizadas que ilustram as sutilezas do mundo real, facilitando a assimilação dos conteúdos a serem apreendidos.

A sucessão hereditária, por ser consequência da morte de um familiar, costuma estabelecer cenários dramáticos e desafiadores para a identificação de mecanismos jurídicos que possam prevenir ou pacificar os conflitos estabelecidos.

Com a ideia de contribuir com a compreensão do Direito, é oportuno narrar um curioso causo de advogado que ilustra as dificuldades da abertura da sucessão. Afinal, diz-se que as histórias estão no coração do que a lei significa.

Tudo aconteceu desse jeito:

Na tranquila mansão de João Rocha, onde as sombras da tristeza pairavam após sua partida inesperada, um segredo esperava pacientemente para ser desvendado. O advogado da família, ciente da importância dos procedimentos sucessórios, trouxe consigo uma carta lacrada, contendo palavras do falecido que poderiam transformar o rumo da vida daquelas pessoas.

Com olhares carregados de curiosidade e emoção, a família se reuniu na sala de estar, pronta para ouvir as revelações que ecoariam além daquelas paredes silenciosas:

“Adorável Maria e queridos filhos Clara, Ana e Lucas. Há inúmeras realidades paralelas ao casamento. Se estão lendo essa carta, é porque Deus não me deu o tempo para fazer de outro jeito.

Sou prisioneiro de um passado inescapável e incomoda-me profundamente o imprevisível desenrolar dos acontecimentos.

Vocês vão conhecer Isabela e ela vai encontrar a maneira adequada de contar o motivo de ser a única e legítima herdeira de todo o meu patrimônio.

Perdoem-me se frustrei vossas expectativas. Rogo por adaptabilidade e superação. Será o melhor para todos.

João”.

Aquela leitura foi ruidosa como uma bomba aos ouvidos dos atônitos herdeiros. Ana, como sempre, foi a primeira a reagir. Buscando o olhar de Clara, disse: “Aquela estranha elegante que foi ao cemitério?!”, ao que a irmã respondeu: “Será?”. Maria, como se pensasse pelos lábios, deixou escapar um sussurro quase inaudível: “Senhor, como isso foi acontecer comigo?”. Lucas, ainda que não conseguisse esconder que a cisma o alarmava, não se manifestou. O causídico agendou a reunião que colocaria tudo em pratos limpos.

A sala do escritório estava repleta de tensão e expectativa quando o advogado acompanhado da convidada, adentrou o ambiente. Ela era muito atraente, revelando a beleza que se mantém com o passar dos anos. Sua expressão mostrava a vivacidade de uma mente afiada, indicando sabedoria adquirida ao longo do tempo. Seus trajes clássicos denotavam a sofisticação de uma pessoa bem-sucedida. Cada detalhe de seu visual, dos cabelos, impecavelmente arrumados, aos gestos delicados, evidenciava uma personalidade envolvente. Os olhos brilhantes, cheios de profundidade, pareciam guardar segredos e experiências transcendentes.

Dessa vez, Ana e Clara nem precisaram trocar olhares, pois sabiam que compartilhavam o mesmo pensamento: “Era ela mesma!”. O advogado lançou um olhar significativo à figura em destaque que assumiu a palavra com serenidade e elegância, dizendo: “Não é difícil perceber a aversão e a curiosidade em vossos espíritos. Então, começarei respondendo à pergunta que não quer calar: nunca fui amante de João, nem mantive com ele qualquer vínculo dessa natureza. Contudo, é fato que celebramos um negócio e sou a titular de todo o seu patrimônio.”.

A incredulidade da família foi expressa pela fala de Ana que, buscando apoio do advogado, questionou: “Pode haver negócio com a herança de pessoa viva? Papai não deixou um testamento e, até o momento, nem foi iniciado um inventário. Além do mais, que motivos ele teria para deixar seus bens para uma estranha, ficando a família desamparada?”. O advogado fez um aceno de calma para Ana e pediu para Isabela continuar.

“João, nos últimos anos, andava muito reflexivo. Observava o mundo dos negócios e via como fortunas poderiam ser dissipadas devido à falta de planejamento sucessório adequado. Durante esse processo de análise, também cogitou sobre sua vida pessoal e atinou que as escolhas e os comportamentos de sua família se pautavam em um apreço peculiar por bens materiais. Sentia-se responsável, pois desejando oferecer a vocês as melhores oportunidades, talvez tenha falhado em transmitir a importância de valores intangíveis e mais significativos para uma satisfação plena. Foi por isso que ele tomou a decisão de criar uma holding familiar e transferir todo o patrimônio para essa sociedade. Como consequência, vocês não herdarão a propriedade dos bens, ficando mais livres para desenvolver simplicidade, gratidão e cuidado com as relações interpessoais, atributos que realmente importam, na opinião de João.”.

Dessa vez foi Clara quem protestou: “O que é planejamento sucessório? O que é uma holding familiar? Não seria inconstitucional alguém passar a titularidade total de seu patrimônio a uma sociedade? Afinal, consta na Constituição que o direito de herança é garantido. Além do mais, a carta dizia que a senhora era a titular do patrimônio.  Existindo uma holding familiar, não precisa haver inventário? Ainda há pontas soltas nessa explicação”.

“Você tem razão!”, continuou a convidada. “Há algo mais a ser dito: A holding é uma pessoa jurídica da qual sou a administradora. Sua criação foi inspirada na falecida mãe de seu pai, Dona Isabela. Pois, foi ela quem construiu todo esse patrimônio.” Diante dessa menção, Maria pensou: “Senhor, que bom ter levado consigo aquela megera”, mas dessa vez conteve os lábios.

Isabela acrescentou: “Dona Isabela, mãe muito atenciosa e mulher cuja beleza encantava a todos ao redor, era possuidora de excepcionais habilidades administrativas no ramo imobiliário. Sua influência era tão significativa na vida de João, que ele a considerava sua principal referência pessoal e profissional.  Assim, o contrato social da holding foi elaborado incorporando, nos detalhes, sua identidade organizacional. Além disso, em meu contrato de trabalho, que inclui um salário compensador, sou exigida a atuar como atuava sua figura materna em todas as áreas, tanto profissionais quanto pessoais. Isso implica em adotar traços físicos semelhantes, como tom de pele e cor de cabelo, escolher roupas que reflitam seu estilo e imitar sua voz, expressões e vocabulário distintos. Para melhor me adequar, ele até me disponibilizou um antigo diário dela.”.

Lucas, assombrado, dilatou as pupilas. Isabela então concluiu: “Já sabem, portanto, os motivos de João. E não tendo o tempo para abordar as questões de natureza jurídica, sugiro que leiam o relatório que passarei às mãos do Doutor. Nele encontrarão suas respostas”.

A reunião estava encerrada. Ao se retirar, Isabela se aproximou de Maria e sussurrou ao seu ouvido: “Olá nora querida! Pensou que tinha se livrado de mim, não é? Enganam-se aqueles que pensam que a morte tudo resolve! Heh heh heh!”. Maria desmaiou!


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